Contribuição social para o seguro de acidente do trabalho

A matriz constitucional dessa contribuição social reside no art. 7º, inciso XXVIII da CF in verbis:

 

“Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:

XXVIII – seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa;”

 

E o § 10, do art. 201 da CF completa, prescrevendo que a “lei disciplinará a cobertura do risco de acidente do trabalho, a ser atendida concorrentemente pelo regime geral de previdência social e pelo setor privado.”

Com fundamento nos dispositivos constitucionais retrocitados o art. 22 da Lei nº 8.212, de 24-7-1991 instituiu a contribuição social para o seguro de acidente do trabalho nos seguintes termos:

 

“Art. 22. A contribuição a cargo da empresa, destinada à Seguridade Social, além do disposto no art. 23, é de:

II – para o financiamento do benefício previsto nos arts. 57 e 58 da Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991, e daqueles concedidos em razão do grau de incidência de incapacidade laborativa decorrente dos riscos ambientais do trabalho, sobre o total das remunerações pagas ou creditadas, no decorrer do mês, aos segurados empregados e trabalhadores avulsos: (Redação dada pela Lei nº 9.732, de 1998)

  1. a) 1% (um por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante o risco de acidentes do trabalho seja considerado leve;
  2. b) 2% (dois por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado médio;
  3. c) 3% (três por cento) para as empresas em cuja atividade preponderante esse risco seja considerado grave.

  • 3º O Ministério do Trabalho e da Previdência Social poderá alterar, com base nas estatísticas de acidentes do trabalho, apuradas em inspeção, o enquadramento de empresas para efeito da contribuição a que se refere o inciso II deste artigo, a fim de estimular investimentos em prevenção de acidentes.”

 

De longa data vem grassando séria controvérsia acerca da aplicação das alíquotas dessa contribuição social. A doutrina tem-se orientado no sentido da inconstitucionalidade dessa exação, por falta de definição legal do que sejam riscos mínimo, médio e grave para ensejar a aplicação das alíquotas de 1%, 2% e 3%, respectivamente, nos termos do art. 22, inciso II, das Lei nº 8.212, de 24-7-91. Existe, também, uma corrente doutrinária reconhecendo a validade da alíquota de 1%, porque qualquer que venha a ser a definição de risco mínimo a alíquota aplicável seria de 1%. Concordamos com esse posicionamento.

Entretanto, a jurisprudência de nossos tribunais vem se orientando no sentido da validade dessas alíquotas, que estão fixadas por lei, cabendo ao Executivo apenas enquadrar as empresas em cada um desses graus de risco.

No processo nº 2001.02.01.038174-0, da 1ª Turma do TRF, da 2ª Região, em que foi Relator o juiz Ney Fonseca, por exemplo, assentou a tese de que os Decretos ns. 356/91, 612/92 e 2.173/97, “não alteraram a base de cálculo da contribuição para o SAT, mas apenas estabeleceram critérios para classificar as empresas de acordo com as atividades preponderantes.”  E prossegue: “A própria Lei nº 8.212/91, que criou o SAT, permite à Previdência alterar, com base nas estatísticas de acidentes, apuradas em inspeção, o enquadramento das empresas para efeito de contribuição do SAT”. Acrescentou, ainda, ser “impossível criar uma nova lei toda vez que fosse necessário reclassificar o grau de risco das empresas.”

Demais decisões a respeito invocam esses mesmos argumentos retro apontados.

Segundo o princípio constitucional da legalidade (art. 150, I da CF), nenhum tributo poderá ser exigido ou aumentado sem prévia lei que o estabeleça. A instituição do tributo pressupõe definição de seu fato gerador, por lei, em sentido estrito.

Como se sabe, o fato gerador da obrigação tributária, além do seu elemento nuclear ou objetivo (descrição abstrata da hipótese em que o tributo é devido) contém o aspecto subjetivo (sujeitos ativo e passivo); o aspecto espacial (onde se realiza o fato gerador); o aspecto temporal (momento em que ocorre o fato gerador); e o aspecto quantitativo. Este último aspecto se subdivide em base de cálculo (grandeza ou expressão numérica da situação jurídica abstratamente descrita) e a alíquota (percentual incidente sobre a base de cálculo).

E é óbvio que todos esses aspectos, por abrangidos na definição do fato gerador, devem ser definidos privativamente por lei, em sentido estrito, salvo no caso de expressa exceção constitucional. Somente os impostos de caráter ordinatório, expressamente referidos no § 1º do art. 153, é que podem ter as suas alíquotas alteradas por decreto do Executivo, atendidas as condições e os limites estabelecidos em lei.[1] Não é o caso de contribuição ao SAT, que se submete inteiramente ao princípio de reserva legal, nos precisos termos do art. 197, incisos I a IV do CTN.

O princípio da tipicidade cerrada não deixa qualquer margem de liberdade ao Executivo para, a pretexto de regulamentar a matéria, provocar aumento, inovação ou alteração do conteúdo quantitativo do fato gerador da obrigação tributária.

Resta claro, portanto, que cabe à lei definir, com exclusividade, as diferentes hipóteses (em abstrato) de riscos de acidentes considerados leve, médio e grave.

A lei definiu satisfatoriamente a base de cálculo dessa contribuição ao SAT, qual seja, o total das remunerações pagas ou creditadas pela empresa, mas, não definiu, por completo, as alíquotas aplicáveis em cada caso. Se o texto legal discriminou três diferentes alíquotas, para três hipóteses diversas de riscos de acidente, que classificou como sendo leve, médio e grave, parece óbvio que sem definição expressa do que sejam esses riscos leve, médio e grave não estará criado o tributo, por omissão parcial no que tange ao elemento quantitativo do fato gerador. A aplicação desta ou daquela alíquota não pode ficar a critério do Executivo. O princípio da estrita legalidade tributária não permite a criação de norma legal em branco.

Dizer que cabe ao Executivo enquadrar as empresas em cada um desses graus de risco é confundir, data vênia, o aspecto normativo ou abstrato do direito com o ângulo do direito concretizado ou realizado. É preciso que a lei diga, em nível hipotético e abstrato, que tipo de empresa desenvolve atividade preponderantemente de riscos leve, médio ou grave, sem o que, a aplicação das diferentes alíquotas ficará à discrição do Executivo, que não tem delegação para isso. É imprescindível que a lei diga o que se entende por riscos leve, médio e grave.

Costuma-se invocar o § 3º, do art. 22 da Lei nº 8.212/91 para tentar justificar a delegação, que na verdade não existe e nem poderia existir.

Aquele parágrafo retrotranscrito, muito ao contrário do alegado não representa uma delegação legislativa para definição dos diferentes graus de riscos, e por conseguinte, das alíquotas aplicáveis.

Como está expresso no próprio texto, delegou-se ao Ministério da Previdência a alteração do enquadramento das empresas nos diferentes graus de risco, previamente definidos em lei. Se esses diferentes graus de riscos não estiverem predefinidos em lei, não haverá possibilidade de enquadramento originário das empresas, e muito menos, de ulterior alteração desse enquadramento com base nas estatísticas de acidentes. Aliás, alterar enquadramento pressupõe sua preexistência. Não se pode alterar o que não existe.

Não se pode confundir descrição legislativa dos riscos leve, médio e grave com a adequação da situação fática à hipótese legal prevista. Aqui sim, cabe falar que é missão precípua do Executivo promover o enquadramento das empresas nas definições legais, e alterar esse enquadramento, se for o caso, ou seja, sempre que as estatísticas de acidentes do trabalho, apurados em inspeção demonstrarem a inadequação do enquadramento inicial. Mas, note-se que não se trata de redefinição ou reclassificação dos graus de riscos de acidentes do trabalho, o que só pode ser feita através de lei. As definições de riscos leve, médio e grave, para efeito de aplicação das alíquotas de 1%, 2% e 3%, respectivamente, não podem ser alteradas pelo Executivo. Cabe a esse Poder tão só promover o enquadramento das empresas nos diferentes graus de risco. A aplicação da lei ao caso concreto é coisa diversa da atividade legislativa. A teoria da tridimensionalidade do direito está a demonstrar que o jurídico se compõe de três elementos interligados: o fato, a norma e o valor. Fato é o antecedente da norma, isto é, um fato concreto, que a lei conferiu relevância jurídica, conhecido como fato jurídico ou fato juridicizado. Norma é a descrição hipotética e abstrata de uma situação, que se concretizada no mundo fenomênico, gera efeito jurídico. Valor, por sua vez, corresponde à operação mental do aplicador da lei, consistente na demonstração de que houve subjunção da norma ao fato concreto, ou, como preferem os estudiosos, subsunção do fato à hipótese legal prevista. O fato concreto constitui fonte material do direito, ao passo que, a norma constitui fonte formal do direito. O elemento valorativo consiste em verificar a adequação da situação concreta à hipótese normativa.   Uma empresa, por exemplo, do setor de transporte de passageiros, originariamente enquadrada pelo Executivo em atividade de risco médio (risco médio definido por lei), se amanhã, ficar provado, por meio de dados estatísticos do Ministério do Trabalho, que o referido setor apresenta risco grave de acidentes de trabalho (assim definido por lei), poderá ter o seu enquadramento originário alterado por ato do Executivo. Não teria sentido, nesse caso, exigir elaboração de lei específica. O legislador, que não é omnisciente, não poderia, de antemão, fixar concretamente uma determinada alíquota para cada setor da atividade, segundo os diferentes graus de risco. Isso é tarefa do Executivo com base na prévia definição de riscos dada pela lei. A modificação do enquadramento ocorre, ou por equívoco no enquadramento inicial, ou pela modificação da situação fática (determinada atividade, que antes apresentava pouco risco, passou a apresentar risco intenso). Não há na lei descrição de hipótese que caracterizam riscos de graus leve, médio e grave, mas tão somente as alíquotas de 1%, 2% e 3% aplicáveis respectivamente aos casos de riscos leves, médios e graves. Entretanto, o STF já decidiu que o simples fato de a lei deixar para o regulamento a complementação dos conceitos de “atividade preponderante” e “grau de risco leve, médio e grave” não implica ofensa ao princípio da legalidade tributária. Acrescentou que se o decreto ultrapassar os limites da lei o problema situa-se no campo da ilegalidade, matéria que não integra o contencioso constitucional (RE 343446, Relator Min. Carlos Velloso, DJ 04-04-2003). No mesmo sentido: AI 620978 AgR/BA, Rel. Min. Marco Aurélio, Primeira Turma, DJe 4-09-2012.

O problema se agravou com o advento do Decreto nº 6.957, de 9-9-2009, que alterou o Regulamento da Previdência Social, aprovado pelo Decreto no 3.048/1999. Ele introduziu por meio do Anexo V uma relação completa de atividades preponderantes e correspondentes alíquotas, que em sua maioria foram oneradas por alíquota máxima de 3%. Parece patente o desvio de finalidade tendo em vista que o remanejamento das atividades preponderantes foi feito de forma imotivada e sem a menor preocupação com os diferentes graus de risco oferecidos por essas atividades.

 

Assim é que são oneradas com alíquota máxima de 3% (risco grave), por exemplo, as agências de matrimônio; o cultivo de frutas em geral; a criação de bovinos, suínos, frangos; a confecção de roupas íntimas; a remoção de resíduos não perigosos etc. Como é possível comparar a atividade de uma agência de matrimônio com a atividade de criação de bovinos ou suínos?

Em contrapartida, são oneradas com alíquota de 2% (risco médio) a remoção de resíduos perigosos; venda de fogos de artifício e artigos pirotécnicos etc.  A contradição é flagrante: enquanto a atividade de remoção de resíduos não perigosos é enquadrada na alíquota de 3% correspondente ao risco grave, a atividade de remoção de resíduos perigosos é enquadrada no grau de risco médio e contemplada com a alíquota de 2%.  Não deveria ser o contrário?

Apenas algumas atividades são oneradas com a alíquota de 1% (risco leve), tais como a manutenção e reparação de equipamentos de irradiação; manutenção de aeronaves na pista; transporte aquaviário para passeios turísticos etc.

Houve patente desvio de finalidade. O Decreto sob exame sequer teve a preocupação de ao menos disfarçar o objetivo fiscal, atentando contra o princípio da razoabilidade ao prescrever a aplicação invertida das alíquotas do SAT ao prescrever alíquotas maiores para atividades de menor risco em potencial. O tributo de natureza regulatória, para prevenir riscos de acidentes do trabalho, passou a ter caráter meramente fiscal. O Executivo valeu-se da faculdade outorgada por lei para fazer uma coisa e fez outra coisa bem diversa.  Manifesta a ilegalidade e inconstitucionalidade desse Decreto, alvo de diversas contestações no Judiciário.

Esse aumento de tributo atabalhoado veio a ser condenado pelo STF: Resp. nº 1425090/PR, Rel. mIn. Napoleão Nunes Maia Filho, j. 16-9-2014.

 

* Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas.  Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 

 

 

[1] Ver Leis nºs 8.7894, de 21-6-1994 que regulamenta o disposto no § 1º, do art. 153 da CF em relação ao IOF. Lei nº 3.244, de 14-8-57 com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei nº  63, de 21-11-66 e pelo Decreto-lei nº 2.162, de 19-9-84 regula os limites e condições para alterar por decreto as alíquotas do imposto de importação, observadas as normas de tratados e convenções internacionais. Lei nº 1.199, de 27-12-1971 regula os limites e condições para alteração das alíquotas do IPI por decreto em função da essencialidade dos produtos.

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