Atentado à Lei Orçamentária é crime de responsabilidade

A Constituição Federal define com solar clareza como crime de responsabilidade do Presidente da República[1] o atentado contra a lei orçamentária nos seguintes termos:

Art. 85. São crimes de responsabilidade os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição Federal e, especialmente, contra:

VI – a lei orçamentária.

Por sua vez dispõe o art. 10 da Lei nº1.079/50:

Art. 10. São crimes de responsabilidade conta a lei orçamentária:

4. infringir, patentemente, e de qualquer modo, dispositivo da lei orçamentária;

6. ordenar ou autorizar a abertura de crédito em desacordo com os limites estabelecidos pelo Senado Federal, sem fundamento na lei orçamentária ou na de crédito adicional ou com inobservância de prescrição legal.

Já se tornou uma prática corrente o desvio sistemático das verbas orçamentárias consignadas na Lei Orçamentária Anual (LOA) aprovada pelo Parlamento Nacional, procedendo-se a abertura de créditos extraordinários ao arrepio das normas orçamentárias em vigor. Assim, a vontade da população no direcionamento dos recursos financeiros arrecadados por meio de pesados tributos, refletida na peça orçamentária aprovada por seus representantes, é desvirtuada e afrontada por ato do Executivo que vem lançando mão de medidas provisórias para remanejar as verbas de uma dotação existente para execução de determinada programação governamental. Não é por acaso que as verbas das dotações, inclusive, as das concernentes a setores essenciais como saúde, educação e transporte são tradicionalmente executadas apenas parcialmente. Ninguém sabe onde vão parar o restante dos recursos não utilizados.

Consoante escrevemos as “despesas extraordinárias são aquelas imprevisíveis e urgentes a serem atendidas mediante abertura de créditos extraordinários tendo como fontes a arrecadação de tributos de natureza temporária: empréstimo compulsório (art. 148, I da CF) e impostos extraordinários (art. 154, II da CF)” [2].

De fato, são os casos de calamidade pública, de guerra ou de comoção interna, que nos precisos termos do art. 41, III, da Lei nº 4.320/64 que dão ensejo à abertura de crédito extraordinário. Esse preceito legal foi recepcionado pelo art. 167, § 3º da CF in verbis:

“A abertura de crédito extraordinário somente será admitida para atender despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública, observado o disposto no art. 62” [3].

O mandamento constitucional é claro como água. Despesas imprevisíveis e urgentes não se confundem com as despesas previsíveis, mas não incluídas na LOA. Estas devem ser objetos de abertura da crédito adicional especial, jamais de crédito extraordinário e muito menos à custa de anulação parcial das verbas de dotações consignadas na LOA.

Nem mesmo eclosão de comoção intestina, guerra ou calamidade pública autoriza abertura de créditos extraordinários à custa do sacrifício de verbas de outras dotações existentes para o cumprimento do plano de ação governamental aprovado pelo Congresso Nacional.

Por isso, existem inúmeras decisões do STF suspendendo os efeitos das leis que converteram as medidas provisórias da espécie, dentre elas as ADIs ns. 2925 e 4.048. Essas decisões têm caráter ilustrativo e educativo, mas os desvios continuaram na ausência de sanção por iniciativa de órgãos ou pessoas legitimadas.

No passado, os desvios de recursos eram feitos mediante expressa indicação das dotações parcialmente anuladas para entender as despesas correntes apelidadas de “extraordinárias”.A partir de 2014 agravou-se a irregularidade da execução orçamentária, ou melhor, aperfeiçoou-se o mecanismo de desvio de verbas. As medidas provisórias que abrem créditos extraordinários para atender despesas normais de Ministérios, órgãos e fundos não mais contêm a indicação da fonte de recursos no corpo do instrumento legislativo, como vinha constando até o ano de 2013. Sãos os casos da MPs ns. 659/14, 655/14 e 654/14 que abriram créditos extraordinários nos valores de 1.773.069.612,00 (para os Ministérios da Defesa e Relações Exteriores), de 5.400.000.000,00 (para programas vinculados ao Fundo de Financiamento ao Estudo) e de 1.304.652.399,00 (para financiamento de atividades da Política Nacional de Justiça e outras), respectivamente. Em nenhuma dessas aberturas de créditos constam as indicações das fontes de recursos no corpo da respectiva medida provisória.O princípio da transparência orçamentária determina a especificação da exata finalidade da verba extraordinária, a sua quantificação e a indicação da respectiva fonte de recursos. A finalidade, além de vaga e imprecisa não se enquadra em nenhuma das hipóteses admitidas pela Constituição e a indicação da fonte de recursos está ocultada.

No inicio de 2015 os desvios começaram antes da aprovação da LOA. As MPs ns. 666/15 e 667/15. A MP nº 666/15 abriu um crédito extraordinário no valor de 20.139.294.891,00 para diversos órgãos do Poder Executivo e de empresas estatais por conta de verbas constantes do Projeto de Lei Orçamentária de 2015 em discussão no Congresso Nacional. A MP n. 667/15, por sua vez, por conta de verbas consignadas no Projeto Orçamentário de 2015 em discussão no Parlamento abriu um crédito extraordinário no valor de 74.014.218.398,00 para atender despesas que nada têm de extraordinário.

O que fazem os órgãos de fiscalização e controle da execução orçamentária? Ao que tudo indica, nada fazem. Por que? Cada um poderá tirar as suas conclusões!

Esse quadro reinante é sumamente grave. Além de escamotear a LOA que é um instrumento do exercício de cidadania à media que pelo princípio da legalidade das despesas direciona a aplicação dos recursos financeiros arrecadados por meio de tributos, esses desvios obrigam o Estado a manter um quadro permanente de elevação da carga tributária para fazer face às crescentes despesas não contempladas na lei orçamentária anual, portanto, não referendadas pela população pagante.

SP, 16-2-15.

Jurista, com 29 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

Site: www.haradaadvogados.com.br



[1] Por simetria, aplica-se aos governadores e aos prefeitos.

[2] Cf. nosso Direito financeiro e tributário, 24. ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 33.

[3] Art. 62 da CF cuida das hipóteses de edição de medidas provisórias.

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