Desapropriação da Refinaria de Manguinhos (Comentários da decisão monocrática do STF)

O governo do Estado do Rio de Janeiro por meio do Decreto nº 43.892/12 declarou de utilidade pública e de interesse social para fins de desapropriação o prédio situado na Av. Brasil, nº 3.141, onde está instalada a Refinaria de Petróleo de Manguinhos SA, abrangendo o domínio útil pertencente a Manguinhos e o terreno que é de propriedade da União.

Fomos eu e o Prof. Celso Antonio Bandeira de Mello contratados pela Refinaria de Manguinhos para examinar e exarar o parecer jurídico a respeito.

Tendo em vista a impossibilidade jurídica de o Estado do Rio de Janeiro desapropriar terreno pertencente à União (§ 2º, do art. 2º do Decreto-lei nº 3.365/41), bem como desapropriar bens empresa que explora uma atividade autorizada pela União sem prévio Decreto autorizativo do Presidente da República , como determina o § 3º, do art. 2º do Decreto-lei nº 3.365/41 exaramos parecer no sentido da absoluta nulidade do Decreto Expropriatório.

Com base nesse parecer que exaramos o Dr. Paulo Henrique Stolf Cesnik representando a Perimeter Administração de Recursos Ltda., uma das acionistas da Refinaria de Manguinhos aparelhou a Ação Cível Originária contra o Estado do Rio de Janeiro perante a Justiça Federal de São Paulo, requerendo a tutela antecipatória para suspender os efeitos do Decreto de Utilidade Pública e de Interesse Social. Após o ingresso da União e da Refinaria de Petróleo de Manguinhos no polo ativo da ação na condição de assistente litisconsorial o processo foi remetido ao Supremo Tribunal Federal, na forma do art. 102, I, f da CF. O Min. Relator Gilmar Mendes concedeu a tutela antecipatória e ao depois proferiu a decisão monocrática declarando a nulidade do ato expropriatório corporificado no Decreto nº 43.892/2012 do Estado do Rio de Janeiro. A decisão abaixo reproduzida foi publicada no DJe de 4-6-2014:

ACO 2162 / SP – SÃO PAULO
AÇÃO CÍVEL ORIGINÁRIA
Relator(a): Min. GILMAR MENDES
Julgamento: 30/05/2014

Publicação

DJe-107 DIVULG 03/06/2014 PUBLIC 04/06/2014

Partes

 AUTOR(A/S)(ES): PERIMETER ADMINISTRAÇÃO DE RECURSOS LTDA
 ADV.(A/S): PAULO HENRIQUE STOLF CESNIK
 RÉU(É)(S): ESTADO DO RIO DE JANEIRO
 PROC.(A/S)(ES): PROCURADOR-GERAL DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
 LIT.ATIV.(A/S): UNIÃO
 PROC.(A/S)(ES): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO
 LIT.ATIV.(A/S): REFINARIA DE PETRÓLEOS DE MANGUINHOS S/A
 ADV.(A/S): URSULA VIEIRA PERONI

Decisão

 Decisão: Trata-se de ação anulatória, com pedido de antecipação de tutela, ajuizada pela empresa Perimeter Administração de Recursos Ltda., acionista da Refinaria de Petróleos de Manguinhos S.A., contra o Estado do Rio de Janeiro, com objetivo de que seja reconhecida a nulidade absoluta do Decreto estadual 43.892/2012, que declarou de utilidade pública e interesse social, para fins de desapropriação, “prédio situado na Av. Brasil, 3.141 (domínio útil e respectivo terreno situado na Enseada de Manguinhos)”, imóvel em que a Refinaria exerce suas atividades.
 A ação foi ajuizada na Justiça Federal de São Paulo e depois encaminhada ao STF em razão do ingresso da União no feito, passando a causa, com isso, à competência desta Corte, nos termos do art. 102, I, f da Constituição Federal.
 Alega a autora, em síntese, que: a) trata-se de imóvel de propriedade da União, com domínio útil pertencente à Refinaria de Petróleo de Manguinhos S.A., conforme aforamento em vigor; b) a atividade exercida pela referida empresa depende de autorização da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis ANP; c) o aforamento do imóvel onde a empresa exerce suas atividades integra o seu patrimônio; e d) a desapropriação pretendida mostra-se, dessa forma, inviável, em face do que
dispõe o art. 2º, §3º, do Decreto-Lei 3.365/41, o qual veda que os Estados, o Distrito Federal e os Municípios desapropriem direitos representativos de capital de empresas cujo funcionamento dependam de autorização do Governo Federal e a ele subordine sua fiscalização.
 Ingressaram no feito, na qualidade de litisconsortes ativos, a União e a Refinaria de Petróleo de Manguinhos S.A. Ambas ratificaram o pedido antecipatório.
 Antes da apreciação do pedido de antecipação de tutela, foi determinada, já nesta Corte, a citação do Estado do Rio de Janeiro, bem como a intimação da Advocacia-Geral da União e da Procuradoria-Geral da República para manifestação acerca da pretensão antecipatória.
 Às fls. 409/434, o Estado do Rio de Janeiro apresentou contestação alegando, em síntese, que: a) ilegitimidade ativa da autora, tendo em vista possuir apenas interesse de natureza econômica e não jurídica. Teria interesse jurídico na anulação do decreto, segundo o contestante, apenas a Refinaria de Petróleos de Manguinhos S.A; b) o objeto do decreto expropriatório é o domínio útil do imóvel, registrado em nome da Refinaria de Petróleo de Manguinhos S.A., e não a propriedade da União relativa ao
terreno de marinha; b) o caso dos autos não se enquadra no art. 2º, §3º, do Decreto-Lei 3.365/41, visto que o domínio útil objeto do aforamento não constitui cota ou direito representativo do capital da Refinaria; c) o citado dispositivo legal afasta a possibilidade de desapropriação de empresa prestadora de serviço público, o que não é o caso da referida Refinaria, cuja atividade foi expressamente excluída do regime de monopólio estabelecido pelo art. 177 da Constituição Federal, nos termos do art. 45 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; d) inexistência de desvio de finalidade, por se tratar de imóvel destinado à reurbanização e à construção de unidades habitacionais populares.
 Às fls. 791/798, a União manifestou-se no sentido de que tem interesse na antecipação da tutela, em vista da manifesta plausibilidade jurídica das razões articuladas pela parte autora. Aduz, na mesma linha, que não obstante a possibilidade de se desapropriar o domínio útil de terreno da União, o Decreto expropriatório é nulo em face da já mencionada vedação constante do art. 2º, § 3º, do Decreto-Lei 3.365/41.
 Às fls. 804/810, a Procuradoria-Geral da República manifestou-se pelo deferimento do pedido de antecipação da tutela.
 Deferido o pedido antecipatório, interpôs o Estado do Rio de Janeiro, dessa decisão, o agravo regimental de fls. 868-883.
 Tendo em conta ser a matéria em discussão nos autos exclusivamente de direito, o processo foi declarado saneado pelo despacho de fl. 917, com a determinação de intimação das partes para apresentação de razões finais. O Estado do Rio de Janeiro recorreu desse despacho por meio do agravo regimental de fls. 948-950, por entender necessário, para a solução da controvérsia, a produção de prova técnica.
 As partes, em suas razões finais, reiteram as manifestações já produzidas nos autos.
 Às fls. 1039-1059, manifestação do Ministério Público Federal pela procedência do pedido,
 DECIDO.
 A validade jurídica do decreto expropriatório funda-se em razões exclusivamente de direito, razão pela qual se mostra prescindíveis a produção de prova técnica. Por esse motivo, não procede a alegação do Estado do Rio de Janeiro quanto a esse ponto.
 No que se refere à preliminar de ilegitimidade ativa, suscitada pelo Estado do Rio de Janeiro, trata-se de questão superada pelo ingresso da Refinaria de Petróleos de Manguinhos S.A no polo ativo do feito, na qualidade de assistente litisconsorcial.
 Quanto ao mérito, reitero, inicialmente, a mesma fundamentação jurídica que serviu de amparo ao deferimento do pedido antecipatório, verbis:
 “Cinge-se a controvérsia jurídica à incidência, na desapropriação em debate, da vedação constante do art. 2º, § 3º, do Decreto-Lei 3.365/41, o qual dispõe:
 Art. 2 o Mediante declaração de utilidade pública, todos os bens poderão ser desapropriados pela União, pelos Estados, Municípios, Distrito Federal e Territórios.
 ( ...)
 § 3º É vedada a desapropriação, pelos Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios de ações, cotas e direitos representativos do capital de instituições e emprêsas cujo funcionamento dependa de autorização do Govêrno Federal e se subordine à sua fiscalização, salvo mediante prévia autorização, por decreto do Presidente da República. (Incluído pelo Decreto-lei nº 856, de 1969).
 Estabelece o art. 8º, V, da Lei 9.478/97, ao dispor sobre as atribuições da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíves ANP, verbis:
 Art. 8º A ANP terá como finalidade promover a regulação, a contratação e a fiscalização das atividades econômicas integrantes da indústria do petróleo, do gás natural e dos biocombustíveis, cabendo-lhe: (Redação dada pela Lei nº 11.097, de 2005).
 (...)
 V - autorizar a prática das atividades de refinação, liquefação, regaseificação, carregamento, processamento, tratamento, transporte, estocagem e acondicionamento; (Redação dada pela Lei nº 11.909, de 2009).
 Essas atribuições, como se percebe, são exercidas independentemente do monopólio a que se refere o art. 4º da citada Lei. Dessa forma, a objeção articulada pelo Estado do Rio de Janeiro quanto a esse aspecto não se reveste de consistência jurídica.
 Diante desse quadro normativo, e considerando que o domínio útil do imóvel ocupado pela Refinaria, enquanto perdurar o aforamento, integra o patrimônio da empresa, resta evidenciada a plausibilidade jurídica da pretensão da autora, porquanto suficientemente demonstrado que a atividade desenvolvida pela Refinaria de Petróleo de Manguinhos S.A. depende de autorização da ANP e se subordina à sua fiscalização.”
 Não fosse isso, observo que o Decreto expropriatório, ao contrário do que afirma o Estado do Rio de Janeiro em sua contestação, abrange não apenas o domínio útil do terreno, como também a propriedade do terreno. Consta do Decreto, expressamente, como objeto da desapropriação, “prédio situado na Av. Brasil, 3.141 (domínio útil e respectivo terreno situado na Enseada de Manguinhos)”, cuja propriedade, com é incontroverso nos autos, pertence à União.
 Por essa razão, não há como conferir validade jurídica ao ato expropriatório, ante a impossibilidade de desapropriação, por Estado Membro, de bem integrante do patrimônio da União, conforme precedente do Plenário desta Corte, verbis:
 “DESAPROPRIAÇÃO, POR ESTADO, DE BEM DE SOCIEDADE DE ECONOMIA MISTA FEDERAL QUE EXPLORA SERVIÇO PÚBLICO PRIVATIVO DA UNIÃO. 1. A União pode desapropriar bens dos Estados, do Distrito Federal, dos Municípios e dos territórios e os Estados, dos
Municípios, sempre com autorização legislativa especifica. A lei estabeleceu uma gradação de poder entre os sujeitos ativos da desapropriação, de modo a prevalecer o ato da pessoa jurídica de mais alta categoria, segundo o interesse de que cuida: o interesse nacional, representado pela União, prevalece sobre o regional, interpretado pelo Estado, e este sobre o local, ligado ao Município, não havendo reversão ascendente; os Estados e o Distrito Federal não podem desapropriar bens da União, nem os Municípios, bens dos Estados ou da União, Decreto-lei n. 3.365/41, art. 2., par. 2.. 2. Pelo mesmo princípio, em relação a bens particulares, a desapropriação pelo Estado prevalece sobre a do Município, e da União sobre a deste e daquele, em se tratando do mesmo bem. 3. Doutrina e jurisprudência antigas e coerentes. Precedentes do STF: RE 20.149, MS 11.075, RE 115.665, RE 111.079. 4. Competindo a União, e só a ela, explorar diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os portos marítimos, fluviais e lacustres, art. 21, XII, f, da CF, esta caracterizada a natureza pública do serviço de docas. 5. A Companhia Docas do Rio de Janeiro, sociedade de economia mista federal, incumbida de explorar o serviço portuário em regime de exclusividade, não pode ter bem desapropriado pelo Estado. 6. Inexistência, no caso, de autorização legislativa. 7. A norma do art. 173, par. 1., da Constituição aplica-se as entidades publicas que exercem atividade econômica em regime de concorrência, não tendo aplicação as sociedades de economia mista ou empresas publicas que, embora exercendo atividade econômica, gozam de exclusividade. 8. O dispositivo constitucional não alcança, com maior razão, sociedade de economia mista federal que explora serviço público, reservado a União. 9. O artigo 173, par. 1., nada tem a ver com a desapropriabilidade ou indesapropriabilidade de bens de empresas publicas ou sociedades de economia mista; seu endereço e outro; visa a assegurar a livre concorrência, de modo que as entidades publicas que exercem ou venham a exercer atividade econômica não se beneficiem de tratamento privilegiado em relação a entidades privadas que se dediquem a atividade econômica na mesma área ou em área semelhante. 10. O disposto no par. 2., do mesmo art. 173, completa o disposto no par. 1., ao prescrever que "as empresas publicas e as sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos as do setor privado". 11. Se o serviço de docas fosse confiado, por concessão, a uma empresa privada, seus bens não poderiam ser desapropriados por Estado sem autorização do Presidente da Republica, Súmula 157 e Decreto-lei n. 856/69; não seria razoável que imóvel de sociedade de economia mista federal, incumbida de executar serviço público da União, em regime de exclusividade, não merecesse tratamento legal semelhante. 12. Não se questiona se o Estado pode desapropriar bem de sociedade de economia mista federal que não esteja afeto ao serviço. Imóvel situado no cais do Rio de Janeiro se presume integrado no serviço portuário que, de resto, não e estático, e a serviço da sociedade, cuja duração e indeterminada, como o próprio serviço de que esta investida. 13. RE não conhecido. Voto vencido” (RE 172816/RJ,
Tribunal Pleno, Rel. Min. Paulo Brossard, DJ 13.5.1994).
 Diante, portanto, da manifesta impossibilidade de desapropriação, pelo Estado do Rio de Janeiro, do terreno objeto do Decreto expropriatório questionado nos autos, por abranger bem pertencente à União, impõe-se a procedência do pedido anulatório.
 Pelo exposto, julgo procedente o pedido inicial e declaro nulo o Decreto estadual 43.892/2012, com fundamento no art. 21, §1º, do RISTF, e dou por prejudicados os agravos regimentais interpostos pelo Estado do Rio de Janeiro.
 Condeno ainda o Estado do Rio de Janeiro a reembolsar as custas antecipadas pela parte autora e a pagar honorários advocatícios fixados nos termos do art. 19, § 4º, do CPC em R$ 20.000,00 (vinte mil reais).
 Publique-se.
 Brasília, 30 de maio de 2014.
Ministro Gilmar Mendes
Relator
Documento assinado digitalmente

Relacionados