Discussão acerca da prescrição das ações decorrentes de atos de improbidade administrativa definidos na Lei nº 9.429/92

O Supremo Tribunal Federal está discutindo nos autos do RE nº 852.475, aonde se reconheceu a existência de repercussão geral do tema suscitado, para saber se a ação de ressarcimento por ato de improbidade administrativa é prescritível ou não. Oito votos já foram proferidos: dois votos pela prescritibilidade da ação conforme lei de regência da matéria seguindo o voto do Relator, Ministro Alexandre de Moraes, e dois votos contrários, sustentando a imprescritibilidade da ação da espécie.  Quaisquer que sejam os votos a serem proferidos n’um ou n’outro sentido a tese da prescritibilidade vincará por maioria de votos.

Quem tem conhecimento rudimentar do direito constitucional deve estar estranhando que uma matéria concernente à prescrição da ação seja levada à apreciação da mais Alta Corte do País.

É que a Constituição Cidadã de 1988 constitucionalizou parcela ponderável de nosso ordenamento jurídico. Conferiu status constitucional a uma quantidade enorme de normas da legislação ordinária, arrisco a afirmar, com o objetivo de obstar o regular funcionamento da Corte Suprema, composta de apenas onze Ministros encarregados de julgar nos crimes comuns as autoridades com foro privilegiado. Sob esse prisma, quanto mais demorar o julgamento melhor para os destinatários de foro privilegiado, pois o tempo faz cair no esquecimento atos reprováveis perpetrados, assim como maior a possibilidade de ocorrer a extinção da punibilidade pela superveniência da prescrição, sem que a barulhenta mídia se lembre do fato.

Dessa forma, normas de direito civil, notadamente, aquelas voltadas para o direito de família, preceitos de direito tributário e de direito administrativo foram elevadas à categoria de preceitos constitucionais. Não bastasse esse embaralhamento de normas de natureza ordinária espraiadas no Texto Magno criou-se a figura da repercussão geral. Proclamada a existência de repercussão geral sobre determinado tema, juízes e tribunais ficam proibidos de prosseguir no julgamento de processos envolvendo tema sob repercussão geral proclamada pelo STF que não tem prazo para sua inclusão na pauta. Tudo fica na base do “eu não faço, ninguém pode fazer”. Essa figura jurídica só tem eficácia nos países onde há uma Corte Constitucional encarregada de julgar apenas e tão somente questões de natureza constitucional. Assim, milhares de processos de suprema importância para a sociedade em geral ficam sobrestados espalhando um clima de total insegurança por um tempo indefinido. Empresas não podem implementar projetos de expansão de suas atividades por conta da indefinição do regime tributário aplicável, por exemplo, dentre outros empecilhos decorrentes da paralisação parcial da máquina judiciária.

Mas, voltemos ao tema. Por que esse tema foi parar no Supremo Tribunal Federal? Por causa dos jabotis estrategicamente colocados no art. 37 da CF representados pelos §§ 4º e 5º adiante transcritos:

 

“§ 4º – Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível.

  • 5º – A lei estabelecerá os prazos de prescrição para ilícitos praticados por quaisquer agentes, servidor ou não, que causem prejuízos ao erário, ressalvados as respectivas ações de ressarcimento”.

 

Resta claro que essas matérias poderiam ser reguladas diretamente pela legislação específica, a Lei nº 8.429/92 que se seguiu, dispondo sobre as sanções aplicáveis aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito no exercício de mandato, cargo, emprego ou função na administração pública direta, indireta ou fundacional. De fato, o art. 23 dessa Lei veio estabelecer com solar clareza:

 

“As ações destinadas a levar a efeito as sanções previstas nesta Lei podem ser propostas:

I – até cinco anos após o término do exercício do mandato, de cargo em comissão ou de função de confiança:

II – dentro do prazo prescricional previsto em lei específica para faltas disciplinares puníveis com demissão a bem do serviço público, nos casos do exercício de cargo efetivo ou emprego.”

 

Onde a dúvida? Onde a necessidade de discutir a matéria por tão longo tempo nos tribunais? O RE nº 852475 tramita no STF desde o ano de 2014. Quanto ao prazo do inciso I basta simplesmente contar nos dedos o tempo decorrido a partir do exercício dos eventos aí mencionados. O do inciso II basta igualmente a simples leitura do art. 142, inciso I da |Lei nº 8.112/90 – Estatuto do Servidor Público que assim prescreve:

 

“Art. 142 – A ação disciplinar prescreverá:

I – em 5 (cinco) anos, quanto às infrações puníveis com demissão, cassação de aposentadoria ou disponibilidade e destituição do cargo em comissão.

  • 1º. O prazo de prescrição começa a correr da data em que o fato se tornou conhecido”.

 

 

Verifica-se que o termo inicial para contagem da prescrição difere do disposto no art. 111, I, do Código Penal segundo o qual a contagem do prazo inicia-se do dia em que o crime se consumou, e não da data em que o fato se tornou conhecido.

No caso do ato de improbidade, o prazo conta-se do dia em que o fato se tornou conhecido, e não do dia em que o fato se consumou, o que facilita a compreensão do aplicador da lei.

Esses prazos teriam sido fixados pela Lei nº 8.429/90 independentemente da determinação constitucional, por ser matéria que se insere no âmbito da legislação infraconstitucional.

Jogar nos ombros dos onze Ministros a responsabilidade de julgar milhões de processos versando sobre a quase totalidade das normas legais existentes no âmbito da legislação federal, por via de constitucionalização direta ou indireta de normas que sabidamente não se revestem de natureza constitucional, é o mesmo que inviabilizar  ou tornar ineficaz o princípio de acesso universal à jurisdição que é exercida em regime de monopólio estatal pelo Poder Judiciário, encimado pelo STF que, como vimos, tem o poder de paralisar parcialmente a ação dos juízes e tribunais pela simples proclamação indiscriminada de repercussão geral nos processos que levam lustros para serem julgados. É bom que se pense nisso antes de elaborar outras infindáveis normas legais para tentar agilizar a nossa Justiça que de há muito não vem cumprindo a sua missão constitucional.

Pouquíssimas são as leis claras, objetivas e com poucas normas voltadas para o aspecto processual que atualmente tomou conta do universo jurídico, como se o direito material existisse em função do direito processual. Podemos citar entre elas a Lei básica de desapropriação, Decreto-lei nº 3.365/41 e a recente Lei de Arbitragem, Lei nº 13.129/15 que resultou do anteprojeto elaborado pela Comissão de Juristas presidida pelo Ministro do STJ, Luis Felipe Salomão e que é considerada uma das melhores do mundo nessa matéria. Já existem dezenas de projetos legislativos em exame no Congresso Nacional para introduzir uma porção de jabotis nessa Lei de nº 13.129/15, como nos projetos de lei de conversão de medidas provisórias, para torná-la dúbia, confusa e de difícil operacionalização, retirando a sua virtude maior que é a eficiência e rapidez na solução do litígio que está levando muita gente a fugir do Judiciário, um Pode falido em termos de pacificação e harmonização da sociedade.

Por fim, no meu modesto entender a simples referência feita no § 5º do art. 37 da CF para que lei específica estabeleça os prazos de prescrição das ações decorrentes do ato de improbidade não era suficiente para atrair a intervenção do STF que não deveria estar se ocupando dessa matéria em prejuízo de apreciação de centenas de casos que envolvem realmente matéria constitucional e que estão em stand by.

 

SP, 6-8-18.

 

 

 

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