Fenômeno da repercussão econômica do tributo

 dr kiyoshi 25-11-19

Kiyoshi Harada

 Jurista e professor. Presidente do IBEDAFT

 

 

A repercussão econômica do tributo no nosso entender não é uma noção jurídica, mas, um conceito de ciência das finanças ou da ciência econômica destinado a subsidiar ensinamentos teóricos e especulativos em torno do conteúdo do tributo.

Repercussão vem do verbo repercutir que significa reverberar, ecoar, reenviar, repetir. Logo, repercussão é sinônimo de reverberação, de eco, de reenvio, de repetição, de ressonância. Esse ato de repercutir, ou seja, o ato de determinado contribuinte ir transferindo o ônus financeiro do tributo ao próximo da etapa de circulação da mercadoria até o consumidor final, ocorre nos chamados tributos indiretos, mediante inserção do valor do tributo no preço da compra e venda. Portanto, a repercussão econômica do tributo tem natureza financeira e não tributária.

Consoante escrevemos, o imposto indireto seria aquele em que o ônus financeiro do tributo é transferido ao consumidor final, por meio do fenômeno da repercussão econômica [1].

Daí porque, a nosso ver, equivocadamente, a doutrina do direito tributário costuma distinguir contribuinte de direito do contribuinte de fato. Aquele é o sujeito passivo natural da obrigação tributária por ter um liame jurídico com o fisco, enquanto que este último nenhuma relação jurídica mantém o fisco que sequer o conhece, mas, arca com o encargo financeiro do tributo.

Todavia, a classificação de impostos em diretos e indiretos é de natureza meramente doutrinária ditada pela ciência das finanças. Não existe tal classificação na seara do direito tributário.

E mais, nos chamados imposto indiretos, não apenas os valores dos tributos ditos indiretos compõem o preço da mercadoria ou do serviço a ser pago pelo consumidor, como também, outras despesas, inclusive, aquelas concernentes ao pagamento da folha de empregados, que igualmente repercutem economicamente no valor do produto ou do serviço.

Nem por isso, ao que saibamos, a doutrina desenvolveu a teoria do empregador de fato, como vem acontecendo corriqueiramente em relação ao valor dos tributos indiretos embutido no preço das mercadorias ou serviços.

Entretanto, muitos autores, assim como a jurisprudência de nossos tribunais conferem efeito jurídico ao fenômeno da repercussão econômica, desenvolvendo peculiar tese, segundo a qual os contribuintes seriam os consumidores, mas que por questões de praticidade e economicidade a legislação incumbiu um determinado contribuinte de recolher o tributo (contribuinte de direito), que repassa a subtração econômica que sofreu, incluindo o valor do tributo  no preço a ser pago pelo consumidor final (contribuinte de fato).

Esse tipo de raciocínio, que não é jurídico, não encontra menor guarida no sistema tributário vigente, que não elege o consumo como fato gerador do imposto. Até mesmo o IPI, antigo imposto sobre o consumo, tem como fato gerador a operação com produto industrializado nas três situações previstas no art. 46 do CTN.

No caso do ICMS, típico exemplo de imposto indireto, o seu fato gerador é a circulação de mercadoria e não o seu consumo.

Logo, o contribuinte do imposto só pode ser aquele que promove operação de circulação de mercadoria, e não aquele que consome a mercadoria. Mesmo nas hipóteses de substituição tributária não se pode dissociar o elemento nuclear, objetivo ou material do fato gerador da obrigação tributária do seu elemento subjetivo passivo, buscando vinculação de uma terceira pessoa alheia à situação configuradora do fato gerador. O consumidor não é contribuinte, nem pode ser eleito como responsável tributário (art. 128 do CTN) porque ele é uma pessoa estranha ao fisco que sequer o conhece.

Essa repercussão econômica, e não a jurídica, que não reconhecemos, não se confunde com a figura do diferimento em que o pagamento do imposto devido em uma determinada operação, por exemplo, saída de produtos primários, fica postergado para o momento da saída de produtos resultantes da industrialização daqueles produtos primários. Isso nada tem a ver com a chamada repercussão jurídica. No diferimento o momento do pagamento do imposto é transferido para outro momento a cargo de outro contribuinte.

Os defensores da tese da repercussão jurídica do imposto indireto, dando nascimento a esquisita figura do contribuinte de fato, esquecem que toda a mercadoria tem embutido no seu preço, não apenas os tributos indiretos, como também, todas as demais despesas que são levadas em conta na política de definição de preços: matéria prima, custos administrativos, folha salarial e margem de lucro. Dessa forma, o consumidor, em última análise, está remunerando os empregados da empresa vendedora da mercadoria. Nem por isso fala-se em empregador de fato, em empresário de fato etc.

Na remuneração do servidor público é comum dizer que o verdadeiro pagante é o povo em geral que tem a parcela de sua riqueza produzida retirada compulsoriamente pelo Estado que, com o produto dessa arrecadação, entre outras coisas, remunera o servidor público.

Entretanto, esse fato não faz do povo o empregador de fato, a ponto de atribuir qualquer efeito jurídico em função desse fato. Tudo que o povo pode fazer é espernear, clamando contra os empregados públicos ociosos que se servem dos cargos e funções que ocupam, ao invés de servir ao povo que os sustentam.

É verdade, que o CTN juridicizou, a nosso ver, equivocadamente, o fenômeno da repercussão econômica ao inserir o art. 166 que assim prescreve:

 

“A restituição de tributos que comportem, por sua natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, somente será feita a quem prove haver assumido o referido encargo ou, no caso de tê-lo transferido a terceiro, estar por este expressamente autorizado a recebê-la.”

 

Este dispositivo, fundado no princípio pomponiano, que veda o enriquecimento ilícito, exige para repetir o indébito tributário condições nem sempre possíveis, acarretando a perpetuação do tributo indevidamente pago, violando exatamente o princípio do enriquecimento em que se fundou a aludida norma. Se é ruim o particular auferir enriquecimento sem causa, pior será quando o Estado se enriquecer sem causa, ferindo o princípio da moralidade da administração pública prescrito no art. 37 da CF.

Esse dispositivo contraria, também, o princípio constitucional da legalidade tributária que veda a tributação além do permitido em lei, impondo-se a repetição do eventual excesso, da mesma forma que se impõe a cobrança de eventual diferença faltante.

Se o tributo foi cobrado a mais do que o devido não há que se impor qualquer espécie de condicionamento para a restituição do excesso. Nem é preciso provar o erro no recolhimento a maior do tributo, porque este configura uma obrigação ex lege que independe da vontade das partes da relação jurídico-tributária.

Por isso, ao comentarmos o art. 166 do CTN, que juridiciza o conceito econômico, demonstramos que esse artigo impõe condições impossíveis de serem cumpridas para legitimar o pleito de restituição do indébito tributário [2].

            A jurisprudência de nossos tribunais, emprestando efeitos jurídicos ao fenômeno da repercussão econômica, na verdade, irrelevante em termos de direito tributário que estuda apenas as relações jurídicas entre o fisco e contribuinte do ponto de vista material e do ponto de vista processual, tem proferido decisões conflitantes.

Na esfera penal, por exemplo, a 3ª Turma do Tribunal de Justiça enxergou a prática da conduta tipificada no inciso II, do artigo 2º da Lei nº 8.137/90 (apropriação indébita), o fato de o contribuinte apurar e informar ao fisco o montante do ICMS devido, sem recolher o valor informado aos cofres públicos, sob o fundamento de que pelo fenômeno da repercussão econômica aquele contribuinte apropriou-se do imposto pago pelo consumidor (HC nº 399109/SC, Rel. Min. Rogério Chietti Cruz, DJe 31-8-2018).

É o caso de se perguntar: como fica na hipótese de o consumidor deixar de pagar o preço da mercadoria adquirida? O fisco fará a repetição do indébito tributário?

Em outra passagem o STF declarou a inconstitucionalidade da Lei nº 4.012/2017 do Estado de Rondônia que proíbe a cobrança do ICMS sobre as contas de luz, água, telefone e gás de igrejas e templos religiosos porque “a imunidade tributária subjetiva aplica-se aos seus beneficiários na posição de contribuinte de direito, mas não na de simples contribuinte de fato, sendo irrelevante para verificação da existência do beneplácito constitucional a repercussão econômica do tributo envolvido”, como constou do voto proferido pelo Ministro Alexandre de Moraes, que reproduziu o trecho da afirmativa contida no julgamento do RE n٥ 608.872.

Transcrevamos para melhor exame a Ementa da ADI 5816:

 

“TRIBUTÁRIO. IMUNIDADE DE IGREJAS E TEMPLOS DE QUALQUER CRENÇA. ICMS. TRIBUTAÇÃO INDIRETA. GUERRA FISCAL. CONCESSÃO DE BENEFÍCIO FISCAL E ANÁLISE DE IMPACTO ORÇAMENTÁRIO. ART. 113 DO ADCT (REDAÇÃO DA EC 95/2016). EXTENSÃO A TODOS OS ENTES FEDERATIVOS. INCONSTITUCIONALIDADE. 1. A imunidade de templos não afasta a incidência de tributos sobre operações em que as entidades imunes figurem como contribuintes de fato. Precedentes. 2. A norma estadual, ao pretender ampliar o alcance da imunidade prevista na Constituição, veiculou benefício fiscal em matéria de ICMS, providência que, embora não viole o art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF – à luz do precedente da CORTE que afastou a caracterização de guerra fiscal nessa hipótese (ADI 3421, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 5/5/2010, DJ de 58/5/2010) –, exige a apresentação da estimativa de impacto orçamentário e financeiro no curso do processo legislativo para a sua aprovação. 3. A Emenda Constitucional 95/2016, por meio da nova redação do art. 113 do ADCT, estabeleceu requisito adicional para a validade formal de leis que criem despesa ou concedam benefícios fiscais, requisitos esse que, por expressar medida indispensável para o equilíbrio da atividade financeira do Estado, dirigi-se a todos os níveis federativos. 4. Medida cautelar confirmada e Ação Direta julgada procedente” (ADI nº 5816, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 26-11-2019).

 

Como se verifica, n’um caso o STJ criminaliza a conduta do devedor do ICMS com base na teoria de repercussão econômica do tributo; n’outro caso o STF considera irrelevante juridicamente a repercussão econômica do imposto, para decretar a inconstitucionalidade da lei estadual de Rondônia que proíbe a cobrança do ICMS embutido nas contas de luz, água, telefone e gás das igrejas e templos religiosos. Embora diferentes os tribunais que proferiram as decisões retro apontadas, o fato é que a repercussão econômica do imposto ora surte efeito jurídico, ora é irrelevante juridicamente.

Na verdade, ao direito tributário não interessam noções que não digam respeito às relações jurídicas materiais ou processuais entre o fisco e o contribuinte, sujeito passivo natural da obrigação tributária. A repercussão econômica do tributo não faz parte do direito tributário.

Como dizia o saudoso professor Geraldo Ataliba ao jurista cabe apenas desenvolver postura mental jurídica, com total abstração de conceitos de natureza meta-filo-jurídicos.

De fato, esses conceitos podem e devem ser levados em conta pelo legislador. Porém, uma vez elaborada a lei, a sua interpretação há de ficar adstrita à hermenêutica jurídica, sob pena de tornar absolutamente inseguro a ordem jurídica positivada.

 

SP, 2-12-19.

 

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[1] Conf. nosso Direito Financeiro e Tributário, 28º Edição. São Paulo: Atlas, 2019, p.336.

[2] CTN Comentado, 4ª Edição. Kiyoshi Harada e Marcelo Kiyoshi Harada. São Paulo: Rideel, 2019, p. 295.

 

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