Inconstitucionalidades formais e materiais da Medida Provisória nº 685/15

A Medida Provisória nº 685, de 21-7-2015, que institui o Programa de Redução de litígios Tributário – PRORELIT – trouxe matéria estranha em seu bojo ao preconizar medidas anti elisivas em seus artigos 7º a 13 que serão objetos de análise neste artigo. Esses dispositivos incorrem escancaradamente em vícios de natureza formal e material por total inobservância do princípio da hierarquia vertical das leis.

Deixaremos para outra oportunidade a análise do PRORELIT (arts. 1º a 6º) uma sigla inventada segundo a moda em vigor que não tem o condão de reduzir litígios tributários como propõe o art. 1º. Abordaremos no presente artigo apenas a inconstitucionalidade formal da medida anti elisiva deixando para próximo artigo o aspecto da sua inconstitucionalidade material.

Prescreve o art. 7º da medida provisória sob exame:

“Art. 7º O conjunto de operações realizadas no ano-calendário anterior que envolva atos ou negócios jurídicos que acarretem supressão, redução ou diferimento de tributo deverá ser declarado pelo sujeito passivo à Secretaria da Receita Federal do Brasil, até 30 de setembro de cada ano, quando:

I – os atos ou negócios jurídicos praticados não possuírem razões extratributárias relevantes;

II – a forma adotada não for usual, utilizar-se de negócios jurídico indireto ou contiver cláusula que desnature, ainda que parcialmente, os efeitos de um contrato típico; ou

III – tratar de atos ou negócios jurídicos específicos previstos em ato da Secretaria da Receita Federal do Brasil.

Parágrafo único. O sujeito passivo apresentará uma declaração para cada conjunto de operações executadas de foram interligada, nos termos da regulamentação.”

…..

Art. 9º Na hipótese de a Secretaria da Receita Federal do Brasil não reconhecer, para fins tributários, as operações declaradas nos termos do art. 7º, o sujeito passivo será intimado a recolher ou a parcelar, no prazo de trinta dias, os tributos devidos acrescidos apenas de juros de mora”.

Art. 12. O descumprimento do disposto o art. 7º ou a ocorrência de alguma das situações previstas no art. 11 caracteriza omissão dolosa do sujeito passivo com intuito de sonegação ou fraude e os tributos devidos serão cobrados acrescidos de juros de mora e da multa no § 1º do art. 44 da Lei nº 9.430, de 27 de dezembro de 1996”.

A leitura conjugada dos arts. 7º e 9º dão conta de instituição de uma obrigação tributária acessória com vistas à apuração do imposto.

Ora, o art. 146, III, b da CF submete ao regime de lei complementar a definição de obrigação tributárias in verbis:

“Art. 146 cabe à lei complementar:

I- dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios;

II- regular as limitações constitucionais ao poder de tributar;

III- estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,especialmente sobre:

a)definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aosimpostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatosgeradores, bases de cálculo e contribuintes;

b)obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;

…..

A letra b, do inciso III, do art. 146 da CF submete a disciplina da obrigação como gênero de que são espécies a obrigação principal e a obrigação acessória ao princípio da reserva de lei complementar.

Para manter o princípio da unidade nacional, decorrente do princípio federativo, o legislador constituinte submeteu todos os contribuinte à observância de um idêntico tratamento no que diz respeito ao cumprimento das obrigações acessórias aplicáveis no âmbito da União, dos 27 Estados e no âmbito de 5.550 municípios ou mais.

Logo, uma medida provisória não pode vincular contribuintes estaduais e municipais. Somente uma lei de abrangência nacional poderá dispensar um tratamento isonômico a todos os contribuintes brasileiros.

Fora de dúvida, pois, que a matéria versada no art. 7º de MP nº 685/15 está sob reserva de lei complementar. Consequetemente incide o veto do inciso III, do § 1º, do art. 62 da CF:

“§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:

III – reservada a lei complementar.

Aqui está demonstrada com lapidar clareza a primeira inconstitucionalidade formal da medida provisória sob análise.

Mas não é só. O art. 12 pune com a multa qualificada de 150% o contribuinte que se omitir na declaração de que cuida o art. 7º ou a fizer de forma reputada ineficaz pela autoridade fiscal, independentemente de apuração de eventual fraude ou sonegação de tributos.

Ora, a multa qualificada apenada com 150% só é cabível nas hipóteses de sonegação, fraude e conluio definidos, respectivamente, nos arts. 71, 72 e 73 da Lei nº 4.502/64. Nessas hipóteses em que configuram crimes contra ordem tributária definidos na Lei nº 8.137/90 é obrigatória a representação fiscal ao Ministério Público para fins penais (art. 16 da Lei nº 8.137/90 c.c. art. 83 da Lei nº b9.430/96).

Logo, a simples falta de declaração, ou de declaração reputada ineficaz pelo fisco dará ensejo à instauração da ação penal por crime contra ordem tributária.

Ora, a Constituição Federal no art. 62, § 1º, letra b veda expressamente a edição de medida provisória para dispor sobre direito penal e direito processual penal. Eis aqui a segunda inconstitucionalidade formal

Outrossim, a MP sob análise não preenche requisito da urgência reclamada no caput do art. 62 da CF.

O chamado planejamento tributário, que não se confunde com a dissimulação da ocorrência do fato gerador referida no parágrafo único, do art. 116 do CTN, é uma prática observada no nosso País de longa data, em razão da saturação do nível de imposição tributária que obriga os contribuintes a optar pelos caminhos tributários menos onerosos, sem afrontar a legislação tributária em vigor. A doutrina batizou esse procedimento lícito de elisão fiscal que nada tem a ver com a fraude fiscal em suas diferentes modalidades.

Não houve nos últimos dias qualquer acontecimento repentino no mundo real que tivesse causado uma situação conjuntural anômala que não pudesse ser regulada pelo processo legislativo normal, exigindo-se a uso da via do fast track. A única situação conjuntural anormal que veio à luz nos últimos dias são as sangrias de recursos financeiros públicos imputadas a agentes do governo e a agentes econômicos do setor privado por conta do desencadeamento da operação denominada “Lava Jato” pela Polícia Federal. Ainda que esses escândalos financeiros apurados em inquéritos e processos judiciais tenham resultado na necessidade de implementar um programa de “Ajuste Fiscal” para repor os recursos financeiros desviados que deixaram de ingressar no Tesouro, nada justifica a ação fiscal tendente a arrecadar tributos à margem dos princípios constitucionais tributários.

Sem sombra de dúvida, estamos diante do uso abusivo da medida provisória prevista na Constituição para regular caso de urgência e relevância não passíveis de serem disciplinados pelo processo legislativo ordinário. E aqui está a terceira inconstitucionalidade formal da Medida Provisória nº 685/15.

A medida provisória sob comento deveria ter sido devolvida desde logo ao legislador palaciano por falta do requisito constitucional da urgência. Como não o foi, ela deverá ser rejeitada por estar contaminada por vício incurável da inconstitucionalidade formal, como demonstrado.

SP, 24-8-15.

* Jurista, com 30 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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