O perigo das interpretações extrajurídicas

Sempre que me deparo com textos ou decisões que não se harmonizam com o direito positivado lembro-me das palavras do saudoso Prof. Geraldo Ataliba que dizia: “o jurista deve assumir postura mental jurídica”; “não se pode de dar tratamento econômico sobre uma matéria que é essencialmente de direito”; “deve-se evitar interpretações extrajurídicas” etc.

Realmente, se o aplicador do direito guiar-se pela consideração de aspectos extrajurídicos acabará quebrando a segurança do direito, pois “n” conclusões diferentes serão possíveis conforme o aspecto a que se apegou no trato de determinada matéria. Note-se que mesmo dentro do rigor hermenêutico, os juristas apresentam posições divergentes; imagine-se, então, se não houvessem regras de interpretação jurídica.

Mas, o que mais tem acontecido nos últimos anos é o abandono do critério jurídico de interpretação para se apegarem aos aspectos extrajurídicos, principalmente no campo do direito tributário, onde considerações de natureza econômica, em torno do conceito de justiça, acerca do perigo às finanças públicas são cada vez mais invocadas nas decisões judiciais. Essas considerações, certas ou erradas, são feitas com o escopo de realizar a justiça. Só que, às vezes, há um divórcio entre a justiça e o direito, quer por defasagem da lei, quer pela redação equivocada da lei, quer por opção do legislador. De regra, a justiça há de ser efetivada de acordo com a lei que é o espelho da vontade média do povo.

Como a lei é necessariamente genérica e abstrata, às vezes, a sua aplicação literal pode gerar grave injustiça, hipótese em que a flexibilização da lei pelo julgador é legítima. Lembro-me de um humilde cidadão que matou um pássaro silvestre para alimentar-se. Foi preso em flagrante; o crime é inafiançável. O juiz determinou a sua soltura a despeito do que está na lei vigente. Sua atitude mereceu compreensão de todos. Diferente a hipótese de certo Prefeito de Embu que anos atrás armou várias redes para apanhar os pequeninos pássaros a fim de fazer uma churrascada reunindo familiares de correligionários para comemorar um determinado evento. Foi preso em flagrante em pleno festejo comemorativo, sem direito à fiança.

Fora das hipóteses raríssimas, as normas não devem ser flexibilizadas, muito menos ignoradas pelo juiz, ainda que o critério do julgador espelhe, em determinado caso, melhor justiça.

Não é dado ao juiz substituir-se no critério de justiça adotado pelo legislador, sob pena de afrontar o princípio constitucional da separação dos poderes, um dos fundamentos da República protegido em nível de cláusula pétrea. É comum ouvir entre os profissionais do direito que o Judiciário deve agir apenas como legislador negativo, nunca como legislador positivo, pois não é sua função exercer a representação popular.

Querer fazer justiça à maneira do julgador contra expresso dispositivo legal beira às raias da violência perpetrada contra a ordem jurídica. Equivale mais ou menos a “fazer justiça com as próprias mãos” que é uma conduta tipificada no Código Penal.

Sempre que o julgador se afasta das regras de hermenêutica jurídica para decidir com base em considerações de natureza extrajurídicas as conclusões a que chegam são incertas, inseguras e afrontosas à ordem jurídica como um todo. Nesse sentido, vale a pena recordar alguns casos concretos que vivenciamos.

Lembro-me da tormentosa questão de saber qual é o município competente para tributar por meio do ISS. A definição do ente político titular desse imposto tem variado de tempo em tempo, porque a jurisprudência não tem dado atenção ao aspecto espacial do fato gerador do ISS que está na lei, de forma imutável, desde o advento do Decreto-lei nº 406/68 até hoje na vigência da LC nº 116/03. Como regra geral, o fato gerador do ISS considera-se ocorrido no local do estabelecimento prestador, e na sua ausência, no local do domicílio do prestador. Somente em casos expressos na lei é que o fato gerador considera-se ocorrido no local da prestação. Quer queira ou não é o que está na lei com todas as letras, porque assim quis o legislador que só deve obediência à Constituição. Entretanto, os julgadores inverteram as regras previstas na lei, transformando a hipótese excepcional em regra geral ao decidirem com preocupações voltadas para as questões de guerra fiscal, de justiça ou injustiça na partilha do bolo tributário que são de natureza extrajurídica. Essas questões podem servir para nortear a ação do legislador, mas, nunca a do julgador. Em termos de titularidade para cobrar o ISS sobre as operações de leasing, assistimos com perplexidade, diferentes posicionamentos jurisprudenciais ao longo do tempo sem que houve qualquer mudança legislativa: (a) o ISS é devido no local da prestação; (b) o ISS é devido no local do estabelecimento prestador;[1] (c) o ISS é devido no local da aprovação do financiamento, porque o financiamento é elemento nuclear do fato gerador do leasing. Onde, afinal, deve ser pago o imposto? Na última hipótese, as considerações extrajurídicas levaram os julgadores a confundir o aspecto nuclear do fato gerador do leasing com o seu aspecto espacial. Aquele define a hipótese em que é devido o imposto; este último aspecto define onde deve ser pago o imposto. São duas coisas completamente distintas. Se não existir o leasing por desistência do tomador após a aprovação do financiamento fica prejudicada a questão de saber onde deve ser pago o ISS.

Uma outra questão que bem ilustra o resultado danoso das considerações de natureza extrajurídica diz respeito à supressão do aumento salarial dos servidores municipais de São Paulo em fevereiro de 1995, então previsto no art. 2º da Lei nº 10.688/88. No dia 13 de fevereiro de 1995 foi sancionada nova lei de política salarial, Lei nº 11.722/95 passando o aumento mensal para o aumento quadrimestral.

Pela lei anterior o percentual de aumento calculado com base nos elementos considerados em um mês (número de servidores, número de população, montante da receita corrente limitada ao mínimo de 47% tendo como teto 58% dessa receita e o índice de inflação pelo DIEESE) implementava o aumento salarial do mês seguinte. Só que a nova lei veio com efeito retroativo de sorte a desconsiderar o aumento salarial de fevereiro de 1995, cujo índice de 81% já havia sido calculado pela Secretaria de Finanças da Prefeitura com base nos elementos apurados em janeiro de 1995.

Impetramos centenas de mandados de segurança por violação do princípio do direito adquirido. Os mandados foram acolhidos em sua maior parte. Uma ou outra decisão deixou-se levar pela astuta alegação de que os servidores públicos não têm direito adquirido a um determinado regime jurídico. É evidente que não! Não existe e nunca existiu regime jurídico imutável protegido por cláusula pétrea. Mas, na passagem de um regime jurídico para outro há que se respeitar o direito adquirido que é protegido em nível de cláusula pétrea. Ora, se os servidores haviam trabalhado 13 dias do mês de fevereiro de 1995 sob o regime da lei anterior não havia como deixar de aplicar para aquele mês o reajuste apurado com base nos dados de janeiro de 1995, ou seja, um aumento salarial de 81%.

A maior confusão deu-se na fase de execução do julgado onde prevaleceram critérios extrajurídicos para a realização das contas de liquidação. Argumentou-se que os 81% de aumento no mês de fevereiro de 1995 era excessivo em comparação com os aumentos dos servidores estaduais e federais regidos por outras normas; [2] que era preciso compensar aqueles percentuais com os percentuais de aumentos decorrentes do novo critério quadrimestral;[3] que aqueles aumentos iriam causar danos às finanças do município. Assim, cada julgador determinou a feitura das contas a sua maneira resultando nos seguintes dados; (a) uma parte dos impetrantes obtiveram 81% de reajuste, conforme mandamento legal; (b) outros obtiveram apenas 25%; (c) outros ainda, ficaram com aumento de 30,04%.

Diferentes servidores municipais cujas causas foram por nós patrocinadas com o mesmo empenho e seriedade foram contemplados com precatórios com valores díspares que só agora começaram a ser pagos parcialmente (três vezes o valor da RPV para os idosos e doentes).[4] No início foi difícil explicar porque um ganhou um aumento de 25% e outro um aumento de 81%. Alguns dos que ganharam apenas 25% mostraram insatisfação com o nosso trabalho profissional sustentando que colegas patrocinados por outros escritórios ganharam mais.

Se tivesse prevalecido apenas o que está na lei, ou seja, aumento de 81% no mês de fevereiro de 1995 toda essa confusão não estaria acontecendo. A tentativa de buscar um aumento reputado “justo” gerou as discrepâncias apontadas, conforme o conceito de justiça de cada julgador.

A busca da justiça fora do ordenamento jurídico trás insegurança jurídica total pela disparidade dos resultados alcançados em cada caso envolvendo uma mesma questão jurídica. Acaba criando situações de injustiça real pela diversidade de tratamento dado a uma idêntica matéria sub judiceafrontando o princípio da isonomia. A lei quando erra, erra para todos. O julgador quando erra, erra para alguns.

[1] Essa tese comporta uma variante: considera-se estabelecimento prestador se no local da prestação o tomador disponibilizar alguém para auxiliar na execução do serviço.

[2] Antes que alguém fique espantado com o elevado índice convém explicar que a política salarial da Prefeitura de São Paulo era completamente diferente da dos Estados e da União que na conversão da URV para o Real não adotaram a paridade como fez a Prefeitura paulistana.

[3] Pela nova lei o percentual apurado com base nos dados de um quadrimeste, mantidos os mesmos elementos da lei antiga, implementava o aumento salarial do quadrimestre seguinte.

[4] A fila de pagamento de precatórios integrais está paralisada desde 2006, quando se liquidou uma parte dos precatórios de 2001. Nunca houve, em tempo algum, tamanho atraso como nesse regime da EC nº 62/09 que transferiu a responsabilidade do pagamento para o Poder Judiciário, que vem dando interpretações que impedem o pagamento dos precatórios integrais enquanto existirem idosos e doentes contemplados com privilégio qualificado até 3 vezes o valor da RPV. Como na interpretação dada pela jurisprudência os idosos fazem jus ao privilégio qualificado à medida que completar 60 anos de idade nunca chegará a vez de pagar os precatórios integrais.

Relacionados