O rumoroso processo de impeachment

Continuam acontecendo sucessões de equívocos que começaram com a apresentação da denúncia e parece não mais ter um fim.

A denúncia processada pelo Presidente da Câmara acusou a Presidente de ter feito pedaladas ao represar as verbas pertencentes a bancos oficiais e que houve, também, violação da LOA/2015 ao proceder a abertura de crédito adicional suplementar, sem observância dos requisitos previstos na delegação legislativa.

Só que a denúncia é baseada apenas e tão somente no inciso VI, do art. 85 da CF c/c o art. 10 da Lei nº 1.079/50 que versa sobre atentados à lei orçamentária. Se tivesse invocado o inciso V, do art. 85 da CF c/c com o art. 9º da Lei nº 1.079/50, a chamada pedalada poderia, em tese, ser enquadrada no atentado contra a probidade na administração que está previsto no art. 9º da lei de regência da matéria. Aquele art. 9º contém sete condutas tipificadas por meio de normas abertas, principalmente, a do item 7 que se refere a “proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Tudo ou quase tudo que a governante apeada do poder fez de ruim pode ser acobertado pelo largo  manto da falta de decoro no exercício da Presidência.  Por muito menos o Presidente Collor perdeu o mandato, acusado de faltar com o decorro no exercício do cargo. Naquela ocasião não se falou em violação de lei orçamentária, que sabidamente não é da tradição brasileira observar todos os preceitos da lei orçamentária.

Na falta de dispositivo na LOA/2015 para enquadrar as pedaladas acabaram por invocar, por identidade de efeitos, duas categorias jurídicas bem distintas: o não repasse das verbas orçamentárias e a operação financeira com Bancos de que a União detém o controle acionário. Assim, foi invocada a violação do art. 36 da Lei de Responsabilidade Fiscal que sabidamente não é uma lei orçamentária. Isso equivale a acusar alguém de ter cometido um crime de homicídio e, ao invés de apontar o art. 121 do CP, apontar o art. 50 do Código Civil, por exemplo. É claro que o acusado vai gritar, vai espernear e dizer que não cometeu o crime. Como resultado, nas duas fases do processo (Câmara/Senado) ficamos assistindo, de forma extremamente cansativa, um diálogo de surdos: é crime, não é crime, é crime, não é crime! Pior do que aquela ladainha: um elefante incomoda; dois elefantes incomodam muito mais; três elefantes incomodam mais ainda, etc.

Ao ancorar a denúncia no atentado à lei orçamentária os autores da denúncia, todos eles penalistas dos mais ilustres e respeitáveis que conhecemos, um deles meu colega de turma da Velha Academia do Largo de São Francisco,  deveriam ter contado com o indispensável assessoramento de um especialista em direito financeiro ou orçamentário. As figuras orçamentárias são tão complexas, com sutis distinções que somente um especialista consegue alcançar  o real sentido de cada uma dessas figuras. No caso de abertura de crédito adicional suplementar ficou comprovada a violação do art. 4º da Lei nº 12.952/14 (LOA de 2014), fazendo incidir as normas dos arts. 10, nº 4 e 11, nº 2 da Lei nº 1.079/50 c/c art. 85, VI da CF. O mesmo não aconteceu com as chamadas pedaladas.

A denúncia apresentada pela OAB que narrava alguns fatos como a nomeação do ex Presidente para o cargo de Ministro de Estado, com manifesto e evidente desvio de finalidade, propiciava o enquadramento nas amplas hipóteses do art. 9º da lei de regência, notadamente, o item 7 – a falta de decoro no exercício do cargo – que abarca praticamente tudo de errado que o governo Dilma fez ou deixou de fazer quando era necessário agir: balancetes mensais falsos ideologicamente, contabilidade criativa; alteração do superávit primário no apagar das luzes do exercício de 2014 para ajustar as metas  ao resultado financeiro desastroso[1] a que conduziu as sucessivas violações perpetradas na LRF; não tornar efetiva a responsabilidade dos seus subordinados, quando manifesta em delitos funcionais ou na prática de atos contrários à Constituição[2],  etc. Só para ilustrar, o seu Ministro do Planejamento que chegou a ser preso na operação Lava Jato, durante todo o tempo que depôs como testemunha de defesa no processo de impeachment, repetiu reiterada e cansativamente que controlava apenas as despesas que são fixas, e não as receitas que são meras previsões; que procedeu ao ajuste da meta fiscal no último bimestre de 2014 porque a meta não estava sendo alcançada e a LRF – pasmem os céus –

impunha esse ajuste; que houve uma queda de arrecadação nunca d’antes visto[3]; que a abertura de crédito ADICIONAL suplementar não implicou aumento de despesas e outra asneiras, muitas das quais implicaram clara confissão do crime de prevaricação que cometeu ao longo do tempo. Aproveitou-se de um plenário presumivelmente leigo em matéria orçamentária e lançou a confusão entre abertura de crédito adicional suplementar que, como o próprio nome está a demonstrar, soma-se valores aos que antes já existiam, com remanejamento de verbas por meio de transposição e transferência. E mais, deve ter orientado o governo a abrir créditos adicionais extraordinários, semanalmente, para cobrir despesas correntes que nada têm a ver com as três hipóteses constitucionalmente previstas: guerra externa, comoção intestina e calamidade pública. Confundiu deliberadamente despesas imprevistas, que ensejam abertura de créditos adicionais especiais, com despesas imprevisíveis que ensejam abertura de créditos adicionais extraordinários. Foi assim que o governo foi desmontando quase mais da metade da programação orçamentária aprovada pelo Congresso Nacional. Outros 20%, agora 30% a título de DRU completam o quadro de desmonte quase que total da programação orçamentária aprovada pela sociedade, por intermédio do Parlamento. A essa altura é de se perguntar: para que serve o orçamento anual? Para servir de desmonte ao longo do exercício?  As verbas fixadas nas diversas dotações não deveriam estar refletindo o direcionamento de despesas autorizadas pelo povo por meio do Parlamento?

Mas, retomando o exame da matéria, havia uma denúncia muito bem formulada pela OAB que  ficou cuidadosamente guardada nos escaninhos da Câmara Federal, por questão de conveniência política do senhor Presidente da Câmara. Não se poderia abrir um processo de impeachment para valer, mas fazê-lo de uma forma que pudesse resultar em confusões e tentar tirar proveito da situação caótica dele decorrente.

Foi o que aconteceu. Confundiu-se o crime comum, de competência do Supremo Tribunal Federal, com crime de responsabilidade, a ser julgado exclusivamente pelo Senado Federal por critério meramente político, porque apesar da denominação de crime, não passa de infração política, onde o aspecto jurídico não tem a relevância que tem no processo criminal. Talvez fosse conveniente alterar a denominação contida no artigo 85 da Constituição para Infrações Políticas. Essa confusão resultou na judicialização do processo político que logo se transformou em ativismo judicial, alterando os regimentos das Casas Legislativas e  metendo os Senadores em uma camisa de força: não podem discutir e deliberar sobre matérias que extravasassem os limites da acusação: pedaladas e abertura de crédito adicional suplementar. Aplicou-se rigorosamente os preceitos e os princípios de direito penal, inclusive, no que tange à instrução processual. Nunca se viu tantas oitivas de testemunhas!

Alguns inteligentes Senadores, cuidadosamente, respeitando formalmente os limites da acusação – pedaladas e abertura de crédito adicional suplementar – trouxeram à baila relato de fatos que materialmente estavam contidos no art. 9º da lei de regência da matéria. Acredito que foi isso que formou a convicção dos Senadores pela perda do mandato da acusada. A violação de lei orçamentária, no caso, três Decretos de abertura do crédito adicional, sem observância dos limites da delegação contida na LOA,  foi um mero pretexto, pois não é crível que a abertura desses créditos tivessem acarretado a ruína da economia, causando 12 milhões de desempregados e resultando na perda de legitimidade da Presidente, tornando o País ingovernável. Por isso, essa tese foi fortalecida com a ajuda das pedaladas, uma figura atípica em termos de atentado à lei orçamentária, mas que deu munição para a abordagem dos atos atentatórios à probidade na administração, sempre sob o manto das pedaladas, para não dar ensejo à nulidade do processo. E assim as pedaladas deram certo! Se a Corte Maior permitisse, era o caso de aplicar o conhecido brocardo: Dei me factum dabo tibi jus.

Mas, repita-se, quando a defesa alega que pedalada não é crime, formalmente ela está correta. A contrariedade ao art. 36 da LRF sequer é tipificada na Lei 10.028/2000 que define todos os crimes contra as finanças públicas por atentado à Lei de Responsabilidade Fiscal. Trata-se de norma simplesmente dispositiva. Uma mera recomendação de ordem moral.

Em meio a toda essa confusão houve o julgamento do processo presidido pelo Presidente da Corte Suprema mediante apresentação de dois quesitos, como se estivéssemos diante de dois crimes distintos. O primeiro quesito versou sobre a  perda do mandato, e o segundo,  sobre a suspensão de direitos políticos com inelegibilidade por oito anos. Separou-se  duas coisas inseparáveis ao teor do parágrafo único, do art. 52 da CF. A perda de mandato e a inelegibilidade por oito anos são duas penas principais umbilicalmente ligadas, tal como irmãos siameses. Errado dizer que a inelegibilidade decorre da perda do mandato, como na legislação eleitoral. Ambas as penas principais decorrem a proclamação de procedência da acusação.  Se pode haver perda de mandato com manutenção do direito político, segue-se que pode haver, também, a inusitada hipótese de inabilitação política por oito anos, sem perda do mandato. Na verdade, deveria ter havido apenas um quesito: a acusação é procedente? Se a resposta for sim, a governante terá perdido o seu mandato com inelegibilidade por oito anos. Ponto. A impressão que se tem é que essa forma de votação resultou de consenso de algumas autoridades legislativas para ao depois poder  invocar o precedente em causa própria.

Vários mandados de segurança foram impetrados tanto pela defesa, como por partidos da base governista. Os mandados da defesa evidentemente não podem discutir o mérito da decisão perante a Corte que não detém competência para isso. Mas, em relação aos mandados impetrados por partidos da base governista, só  falta o Supremo Tribunal Federal, a pretexto de acolher um deles,  anular o julgamento começando o pesadelo tudo de novo, o que irá provocar ‘n’ questões jurídicas novas a paralisar o País. Não sabemos do teor do pedido final consignado nesses mandamus impetrados.

O que é pior, dentro desse mar de confusão em que se transformou o processo de impeachment há quem sustente a tese da declaração de inconstitucionalidade do julgamento com modulação de efeitos, para encerrar logo a discussão, invocando o precedente da decisão no caso de Mira Estrela, quando a Corte Suprema declarou a inconstitucionalidade da composição da Câmara daquele Município em desacordo com a Constituição, mas permitiu, por meio de efeito prospectivo, que aquela Casa Legislativa prosseguisse em seus trabalhos até o final dos mandados dos vereadores irregularmente eleitos, para não acarretar a nulidade das leis aprovadas e ferir direitos de terceiros.

Só que aqui não estamos diante de uma declaração de inconstitucionalidade, mas de uma decisão tomada contra texto constitucional, o que é bem diferente. Outrossim, a perda do mandato com inelegibilidade por oito anos da Presidente não fere direitos de terceiros, nem provoca caos na ordem jurídica, como no caso de Mira Estrela, pelo contrário, restabelece a ordem, a moralidade e a normalidade institucional. Urge, pois, que o Supremo Tribunal Federal decrete o quanto antes a nulidade do segundo quesito formulado pelo Presidente da Corte Suprema por desnecessário e redundante, considerando a segunda pena abrangida na resposta dada ao primeiro quesito. Inquestionável o duplo efeito simultâneo que provoca o pronunciamento de procedência da acusação por crime de responsabilidade, na verdade, infração político-administrativa na feliz expressão do art. 4º do Decreto-lei nº 201, de 27 de fevereiro de 1967 que dispõe sobre responsabilidade dos Prefeitos e Vereadores.

[1] Quando a Presidente disse que não iria fixar as metas, mas que iria dobrar as metas assim que alcançadas não estava muito distante da realidade.

[2] Não houve punição de servidores graduados envolvidos em escândalos do petrolão, nem afastamento de Ministros de Estado citados na operação Lava Jato. Pelo contrário, nomeou um ex Presidente para cargo de Ministro de Estado  para conferir-lhe  foro privilegiado e evitar a sua prisão iminente.

[3] Quedas de arrecadação decorreram de inusitados incentivos fiscais casuísticos que patrocinou e prorrogação até o ano de 2018 de centenas de incentivos que estavam com prazos de vencimentos chegando ao termo final, ferindo de morte os princípios da universalidade e da generalidade da tributação. Quem não paga transfere o ônus do tributo a quem está pagando.

 

* Jurista, com 31 obras publicadas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas.  Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito.  Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

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